CHÁVEZ E O ADIAMENTO SINE DIE DA POSSE
Gisálio
Cerqueira Filho
Poucos
cientistas sociais, analistas de política internacional e diplomatas poderiam
imaginar o protagonismo repentino que Cuba veio a ter nos acontecimentos
políticos relacionados com a Venezuela. Como todos sabem Cuba tem acolhido Hugo
Chávez para tratamento médico de um
câncer. O que ninguém imaginava é o vai-e-vem de familiares de Chávez, de
expressivas lideranças venezuelanas e mercosulinas a visitarem em Havana o
Comandante presidente reeleito. Aproveitou-se a oportunidade para consolidar na
tristeza e no afeto recíproco conversações políticas sobre os rumos do
continente. Isto se deve a múltiplos fatores. Destacamos os principais. 1) a
reconhecida solidariedade internacional de Cuba aos países do continente. 2) a
também reconhecida medicina que se pratica em Cuba. 3) a proximidade da ilha do
Caribe com relação a Venezuela e 4) last but
not least, a confiança recíproca entre Venezuela e Cuba. Tudo isso,
levando-se em conta as enormes dificuldades acarretadas pelo bloqueio norte-americano
a Cuba e os efeitos produzidos, sejam econômico, políticos e culturais.
Num
mundo globalizado, diante da tentativa já longa de isolamento de Cuba, da
desconfiança recíproca entre países, das guerras e intervenções militares mundo
afora,
do
desrespeito frequente aos direitos humanos, é comovente o nível de
solidariedade praticado no continente latino-americano a vista de todos e
todas.
As oposições e muitos
seguidores políticos que odeiam Chávez dizem que não há transparência na divulgação
da evolução do câncer do paciente. Mas todos sabem que uma das primeiras
recomendações médicas a quaisquer pacientes de câncer é que “sejam prudentes e
cautelosos na divulgação da doença”. Muitos médicos creem que a divulgação
detalhista do passo a passo da evolução dos tumores cancerígenos conspira desde
a primeira hora contra o paciente. Tal divulgação atuaria, juntamente com
sentimentos mórbidos, de malquerenças e de hostilidade a contra integridade
psíquica do paciente, com repercussão visível no sistema imunológico. Certo que
Chávez não é qualquer paciente, pois que presidente reeleito da Venezuela e
liderança política condutora da “revolução bolivariana” naquele país. Mas certo
também que Chávez é um paciente comum, como qualquer ser humano, e merecedor do
recato e da prudência que a clínica reclama como direito inalienável dos
pacientes, sobretudo de câncer. A literatura médica é pródiga em relatos
minuciosos de pacientes que se viram vilmente atacados por colegas, ex-amigos,
e competidores dos quais não se esperava tanto rancor.
O
jornalista Elio Gaspari publica na sua coluna dominical em O GLOBO
(13/01/2013), reproduzida em vários outros jornais brasileiros, que “não há
força humana capaz de fazer com que a diplomacia americana se meta em
discussões com Chávez, suas obras e suas pompas”. Diz ainda que é a Doutrina
Pocilga e que foi assim enunciada: “se você entra num chiqueiro e se mete numa
briga com os bichos que estão lá, é certo que vai perdê-la”. Cita como variante,
a “Doutrina Bonaparte: se um sujeito
entra num coquetel dizendo que é Napoleão, chame-o de imperador. Se disser que
ele não é, começará uma discussão inútil”.
À
parte o visível preconceito, cujas metáforas pocilga, chiqueiro e bichos (subentenda-se porcos) fazem alusão explícita à América
Latina e aos latino-americanos.
E
também com relação às metáforas Bonaparte, Napoleão, imperador, que, no contexto, aludem aos latino-americanos como
verdadeiros loucos e doentes mentais. Nunca é demais ressaltar o sucesso em
Cuba no tratamento de pacientes com transtornos psíquicos; bem como o fato de
que a pesquisa experimental clínica e cirúrgica, e que estão avançadas na mesma
ilha, especialmente no que concerne ao câncer de abdômen, pelve, etc. e também
na área da urologia.
Nos principais
jornais internacionais de hoje se publica uma foto do líder da Revolução Cubana
e ex-presidente Fidel Castro, com o Presidente dos Conselhos de Estado e de
Ministros, General de Exército Raúl Castro, juntamente com a Presidenta da
República Argentina Cristina Kirchner. No mesmo dia, e em outro local de Havana,
comemorou-se o aniversário de 30 anos do restabelecimento das relações
diplomáticas entre Cuba e o Estado Plurinacional da Bolívia. Em Caracas, na
véspera estiveram juntos Evo Morales, Cristina Kirchner, José Mujica e outros
líderes latino-americanos para a cerimônia que adiou sine die o juramento do termo de posse de Hugo Chávez para o novo
mandato nos termos aprovados pelo Tribunal Supremo de Justiça. Sua presidenta,
Luisa Stella Morales Lamuño, disse a imprensa internacional “que a ausência do
líder não reúne as condições exigidas pela Constituição para substituí-lo, o
que dá a Chávez tempo indeterminado para se recuperar sem deixar o poder”. A resolução do impasse nesses termos já havia
sido aprovada pela Assembleia Nacional, que elegeu Diosdado Cabello presidente,
em vista da carta lida pelo Vice-presidente Nicolás Maduro dando conta da
impossibilidade clínica de Chávez comparecer à cerimonia. Fato é que Havana
acolheu variadas lideranças políticas que visitam Hugo Chávez e familiares,
aproveitando a oportunidade para trocar opiniões sobre o futuro político da
região. Assim, Cuba conseguiu, na contingência histórica, soldar vínculos de
solidariedade latino-americana que transcendem o isolamento internacional e furam
qualquer bloqueio, sobretudo o bloqueio afetuoso e afetivo.
Ranajit Guha, historiador indiano que escreveu,
entre outros livros, Selected
Subaltern Studies,
New York: Oxford University Press, 1988 em co-autoria com a especialista em literatura Gayatri Chakravorty
Spivak e A Subaltern Studies Reader,1986-1995, Univerity of Minnesota
Press, 1997 pondera as dificuldades que as classes subalternas e populares tem
de - no esforço de se rebelarem - exigirem os seus direitos. Frequentemente homens e mulheres das classes
subalternas ponderam que “arriscando tudo, podem colocar tudo a perder”.
Renajit Guha demonstra que a subalternidade em que vivem é materializada geralmente por um padrão estrutural rígido de
propriedade que é institucionalizado pela
lei, santificado pela religião,
tornado tolerável (e até desejável) pela tradição.
Exprimir
sentimentos e práticas de insubmissão implica necessariamente aceitar os riscos
da vulnerabilidade psíquica, pois a aceitação da lei, da religião e da tradição
criam também laços de solidariedade muito poderosos.