UM
OLHO NO PADRE E OUTRO NA MISSA
Gisálio Cerqueira Filho
O
sentido do dito popular que dá título ao artigo é: olhos bem abertos (ou bem
fechados?) para enxergar simultaneamente duas situações distintas que possam se
apresentar. Recorda outro bordão, despido de influência religiosa, que “reza”: um olho no peixe e outro no gato.
Ambos
ilustram o que está a suceder diante desse período de Sé Vacante no Vaticano e o conclave que vai eleger um novo Papa, em
face da renúncia surpresa do já agora Papa Emérito Bento XVI.
Não
desejamos reduzir nada quanto à grandeza do gesto de renúncia e
simultaneamente, no mesmo momento em que ele se realiza, também quanto ao traço
de esperteza na estratégia política maquiaveliana.
Talvez na aparência maquiaveliana,
pois o ato politico em si de renúncia ao poder é antes algo imposto por um
sentido de missão do que propriamente por uma visão da política como arte. Bento XVI definiu-o com o ato de sacrifício,
porém necessário, dada as condições de saúde, mas não só. Os sinais dos tempos
não são apenas agravantes, mas imperiosos na demanda de uma nova liderança
católica romana. Um ato de renúncia é sempre unilateral, mas ele pode ocorrer
na moldura de uma “escolha forçada”. Fixo-me assim nos sinais dos tempos.
Por
ocasião na Encíclica Pacem in Terris,
no auge da guerra fria, João XIII
ousou declarar que eram três os sinais daqueles tempos: 1- os movimentos de
descolonização que ocorriam pelo mundo todo numa sequência de lutas de
libertação nacional. 2- a ascensão dos trabalhadores que se elevavam à
categoria de protagonistas na cena política internacional e não queriam ser
tratados como meros “objetos”. 3- a participação crescente das mulheres que não
aceitavam mais as condições de inferioridade e discriminação social que lhes
eram impostas.
Como
poderíamos hoje traduzir esses sinais dos tempos, já vencida a primeira década
do século XXI? São vários os acontecimentos que servem de pano de fundo para os
nossos também três sinais dos tempos atuais, a saber: pano de fundo - a) fim da
guerra fria, b) queda do “muro de Berlim”, c) fim da União Soviética, d)
mudanças no Leste Europeu, e) unilateralismo norte-americano no quadro de
acentuada crise econômica mundial, g) forte presença dos Papados de João Paulo
II e Bento XVI nos rumos dos acontecimentos políticos na ótica de uma
formidável guinada conservadora de acento religioso. Sinais dos tempos atuais:
1- o fim do projeto de unificação de unificação europeia que remonta ao Plano
Marshall para incluir uma Alemanha a ser desmilitarizada, que contivesse o
antigo aliado da II guerra, a URSS, e projetasse uma Europa sob a hegemonia
francesa e norte-americana. Ninguém, nem os serviços de inteligência mais
alertas, imaginaram a rapidez com que se deu a reunificação da Alemanha e o
desaparecimento da União Soviética subvertendo o quadro internacional anterior.
Para tal subversão muito concorreram as ações de Carol Woitila e Joseph
Ratzinger, respectivamente feitos Papas João Paulo II e Bento XVI. A partir
daí, a nova União Europeia, da qual a unidade monetária Euro é o emblema mais
visível, acentuou uma opção crescente por políticas conservadoras e ortodoxas
por parte da Alemanha. Espelho, espelho
meu, há alguém mais prussiana do que eu? Essa é a pergunta que
provavelmente Angela Merkel faz a si mesma diante do espelho todas as manhãs e
noites ao comparar as suas estratégias com aquelas do antigo Estado prussiano.[1] De todo modo, e já
passamos ao segundo sinal dos tempos de hoje, não foi em vão que o nascimento
da “nova” Rússia a partir das cinzas da URSS foi festejado num evento religioso
realizado na Catedral de São Basílio, na Praça Vermelha, no dia 31 de dezembro
de 1991. A partir de então temos o segundo sinal: 2- a União Europeia
re-significada deveria surgir com a trade
mark “cristã” numa alusão ao diálogo
dos católicos romanos com cristãos ortodoxos, anglicanos, protestantes
evangélicos de diversas orientações; nesse aggiornamento
incluído a comunidade judaica, pois seria um acinte que, depois do Shoa, um Papa, e sobretudo de origem
alemã, acalentasse qualquer retrocesso em relação ao judaísmo, anti-semitismo
ultrapassado no Concilio Vaticano II. Algo mais próximo de um pensamento
neo-conervador de matiz ideológico beirando o absolutismo fundamentalista de
Carl Schmitt. Para a Europa de agora um novo “inimigo político” viria ser
construído. A palavra de ordem da Democracia Cristã alemã nas eleições para o
Parlamento Europeu foi Por Deus e contra
a Turquia... Tudo isso somado é de um silencio ensurdecedor...
Mas
não nos esqueçamos do terceiro sinal dos tempos de hoje. 3- Precisamente a
Alemanha e o Brasil veem a diminuição pronunciada de fiéis católicos. Na
Alemanha várias centenas de milhares de católicos cedem lugar e espaço ao
euroceticismo e ao cinismo religioso quando se deparam com as discrepâncias,
ambivalências e decepções entre as várias lideranças católicas e, sobretudo, as
dificuldades em conseguir uma “unidade na ação”. Já no Brasil várias centenas
de milhares de católicos cedem lugar e espaço às igrejas, especialmente
evangélicas renovadas e, justamente, no segmento das classes populares. Não nos
iludamos, a Jornada Mundial da Juventude a se realizar proximamente no Rio de
Janeiro é uma formidável investimento afetuoso nos segmentos mais jovens, porém
distanciado daqueles que há quarenta anos foram alvo de uma Teologia que falava
em “opção preferencial pelos pobres”. Jovens e pobres, negros e pobres,
mulheres e pobres, favelados e pobres são órfãos de uma liderança religiosa
comprometida com a vivência diária desses que estão hoje cada vez mais
apartados da Igreja Católica. Houve um combate sistemático contra uma renovação
religiosa que fosse inspirada nas reflexões de um Gustavo Guttierrez (Peru), um
Hans Kung (Alemanha), um Luis Segundo (Uruguai), um Pedro Arrupe (Geral dos
Jesuítas), um Ernesto Cardenal (Nicarágua), Pedro Casáldaliga (Barcelona, Espanha)
Leonardo Boff, Helder Câmara, Frei Beto, esses últimos do Brasil, para citarmos
alguns poucos exemplos.
Slavoj Zizek tem uma
interessante reflexão (The Fragil
Absolute, London - N.Y: Verso, 2000). Nesta obra ele tenta responder à
indagação: Por que o legado cristão merece que se lute por ele? A perspectiva é
inovadora, pois aponta para uma reflexão na linha de Alain Badiou, com seus
estudos sobre os primeiros cristãos e a teologia paulina (Paulo de Tarso). Vale
aqui a citação da contra-capa como referência à obra:
“’From now on though we once knew Christ from a human
point of view, we know him no longer in
that way; everything old has passed away: see: everything has become new!’
Saint Paul’s militant declaration from Corinthians
asserts for the first time in human history the revolutionary logic of a
radical break with the past – with it, the age of Cosmic balance and similar
pagan babble is over. What does it means
to return to this stance today?”
Tudo
resumido é necessário então um Papa capaz de literalmente reformar a Cúria
Romana (descentralizar a Igreja?), dar atenção ao Banco do Vaticano e responder
de forma adequada ao capitalismo financeiro e rentista vigente; dar soluções
convincentes às crises institucionais e problemas já referidos por Bento XVI e
que, em parte, o levaram à renúncia. Enfim, ocupar o lugar de poder e direção
(compartilhada) que corresponda à responsabilidade parental de um Papa que não
se volte contra o mundo moderno e seus desafios. Um Papa capaz de dialogar com
o clero alemão dividido, e deste ponto falar à Europa. Falar cada vez mais aos
pobres das Américas, África, Ásia, Oceania. E quando tudo isso estiver
estabelecido, conseguir obter o apoio dos cardeais presentes ao conclave, quase
metade constituída de italianos. Apostar na diversidade.
Oxalá
os deuses estejam presentes!...
[1]
Gisálio Cerqueira Filho. Absolutismo
Afetivo : a Prússia como Sentimento, São Paulo: Editora Escuta. 2005.