OLIGARQUIAS REGIONAIS E A FEDERAÇÃO
BRASILEIRA
Gisálio Cerqueira Filho *
Gizlene Neder **
A república brasileira é complexa e sua
análise exige uma reflexão histórica, onde devemos colocar na bandeja das
ponderações o aspecto autoritário, oligárquico e excludente, que foram
hegemônicos entre 1889 e 1988 e além. Não estamos falando do período colonial; estamos
abordando o instante presente da república.
Identificamos três grandes forças
políticas que se apresentam nestes cento e tantos anos de regime republicano:
as oligarquias agrárias, a Igreja católica romana (nas últimas décadas, as
igrejas protestantes) e as forças armadas. A Igreja havia retirado o apoio à
monarquia nos episódios relacionados aos bispos de Olinda e Belém do Pará na chamada
“Questão Religiosa” na década de 1870. Os militares expressavam um
republicanismo radical e anticlerical (com forte presença do positivismo). Por
sua vez, a “questão religiosa” no Brasil republicano implicou um processo de
secularização lento, tendo a Igreja católica decidido não formar qualquer
partido político. Atuou, no entanto, para garantir uma capilaridade de
influência em todos os partidos e forças políticas. Cuidou atentamente para
influir na política (aparentemente de fora dela), atuando especialmente na
Educação e na Assistência Social que chamou de “serviço social”; as crianças,
as famílias e os pobres “seriam dela”, Igreja.
Na hora presente, texto recente assinado
pelo bispo auxiliar de Brasília e secretário geral da CNBB, Leonardo Ulrich
Steiner, em conjunto com a Associação dos Magistrados Brasileiros, a Associação
Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho e a Associação dos Juízes
Federais do Brasil apela para que "as entidades da sociedade civil se unam
pela superação da intolerância e pela busca de soluções que priorizem o compromisso com o interesse comum do país".
Aqui vamos dar especial atenção à
terceira força política presente neste longo período republicano: as
oligarquias agrárias; elas são o verdadeiro nó górdio da política brasileira.
São diferentes regionalmente (em tantas singularidades quanto são as formações
históricas regionais que foram unidas pela política do Império). Para alguns
historiadores e cientistas políticos, o problema do Brasil são as massas, “amorfas,
desorganizadas e sem educação política”. Queremos defender exatamente o
contrário. Para nós, o problema do Brasil está em suas oligarquias, diferentes
entre si (difícil para um observador do Sul entender as oligarquias do Sudeste,
do Nordeste, Centro-Oeste ou do Norte). Têm interesses contraditórias entre si,
mas complementares e unificados quando farejam perigo para seu poder regional.
A tipificação da proclamação da
república em 1889 como golpe foi durante muito tempo evitada pela
historiografia republicana, pois poderia levar água para o moinho da defesa da
monarquia. Contudo, a proclamação da república implicou uma decisão política
autoritária e deixou de fora do poder político vários setores do republicanismo
genuíno com um viés liberal e democrático. Desagradou um Silva Jardim, um
Clovis Bevilaqua para citar dois amigos que quando estudantes defenderam o
republicanismo.
Qualquer pacto político e social exige a
articulação de diferentes forças sociais e políticas e sua correlação no
sentido vertical e horizontal. O sentido
vertical se refere às classes sociais e sua correlação de forças. Já o sentido horizontal se refere às forças
dominantes supostamente com igual poder político (oligarquias regionais).
O
país saiu da escravidão (em 1888) e implantou a república em 1889 através de um
golpe militar, dado contra a monarquia. Nenhum pacto social pós-abolição da
escravidão implicou a inclusão da massa de ex-escravos à cidadania republicana.
A presença de muitos intelectuais monarquistas impediu durante um bom tempo a
referência ao primeiro golpe republicano dado pelos militares incentivados
pelos interesses das novas oligarquias do café paulista, articuladas no Partido
Republicano Paulista (PRP), com a participação do Partido Republicano Mineiro
(PRM); aliados, mas não iguais. O movimento republicano no Brasil pode ser
dividido em duas grandes correntes: o republicanismo genuíno (setores das
classes médias urbanas, intelectuais, profissionais liberais) e o republicanismo
da hora (setores novos das oligarquias agrárias que estavam fora do jogo de
alianças políticas durante o Segundo Reinado do império brasileiro. No Segundo
Reinado, a unidade política era garantida pela força (militar) que sufocou
todos os movimentos políticos liberais radicais regionais e independentistas e
pela aliança entre as oligarquias escravocratas do Norte (desde a década de
1950 chamado ‘Nordeste’) e as oligarquias cafeeiras escravocratas do Vale do
Paraíba fluminense. As oligarquias do Vale tinham forte ligação com Minas
Gerais e se estabeleceram no Vale do Paraíba fluminense numa atividade substituta
da antiga exploração do ouro. Esta é uma das razões que diferenciam as
oligarquias paulistas das outras oligarquias do que hoje chamamos ‘Sudeste’ –
Minas/Rio e São Paulo. De fato, olhando o processo histórico com a lupa invertida
da longa duração, devemos dizer que se tratam de duas escolhas políticas da
colonização portuguesa: a opção pela escravização de indígenas (bugreiros) e a opção pela imigração
compulsória de escravos oriundos da África (negreiros).
Embora mudanças modernizadoras tenham
ocorrido no país a partir da Revolução de 1930, identificamos uma permanência
de longa duração da cultura política do poder local das oligarquias agrárias
até o tempo presente – mesmo que tenham mecanizado a produção agrícola, e se
designado de “agrobusiness”. Este
poder local autoritário foi plasmado no regime escravista e colonialista e foi
configurado pela centralização monárquica do Partido Conservador do tempo do
Brasil imperial desde a reforma do Código de Processo Penal, de 1841. Esta
reforma teceu a teia do coronelismo enquanto uma cadeia de fruição entre o
poder central (naquela época designado como governo geral) e os poderes locais.
Este pacto foi magistralmente descrito e explicado por Vitor Nunes Leal no seu
livro “Coronelismo, Enxada e Voto” (1948), originalmente tese de concurso
público para professor de Teoria Política da antiga Universidade do Brasil.
Em 1930, as oligarquias de segunda
grandeza (do Sul e do Norte) se articularam com setores urbanos emergentes da
classe média e do operariado e retiraram as oligarquias paulistas/mineiras da direção do
poder central. Estas expressavam um republicanismo pragmático, diferente dos republicanos
genuínos, liberais radicais, e substituíram os primeiros governos militares.
Após 1930, as oligarquias paulistas, derrotadas, ficaram fora do poder central
por várias décadas (entre 1930 e 1994).
A última ditadura militar (1964-1984)
implicou ruptura e mudanças na correlação de forças oligárquicas. Aqui não
podemos deixar de registrar o impacto da reforma tributária de 1965, pela qual
Roberto Campos (então ministro da Fazenda) objetivava quebrar o coronelismo
para viabilizar os projetos moderno-conservadores da ditadura. Sem dúvida, havia
uma limitação ao poder local dos coronéis; mas não significava, ainda, a sua
retirada da cena política. Alguns analistas chegaram a imaginar que o Estatuto
da Terra (Lei 4504 de 30/11/1964), do governo do General Castelo Branco,
poderia abrir caminho para uma repactuação com as oligarquias agrárias, mas não
foi o que ocorreu.
A Igreja integrista (do conservadorismo
clerical) ao seu tempo apoiou a ditadura. A Igreja solidarista (da teologia da
libertação) se opôs a ela. O paradoxo do processo político vivenciado pela
sociedade brasileira nestas duas décadas de transição para o Estado de Direito tem
na inflexão desta força política religiosa um ponto nevrálgico para não dizer
traumático. No auge dos movimentos sociais e políticos organizados, mobilizados
pelo solidarismo da teologia da libertação, em 1980, Karol Wojtyla (João Paulo
II) é escolhido para realizar um papado conservador, de corte europeizado, e
para atuar na desmobilização/constrangimento da teologia da libertação,
predominantemente latino-americana. Quando hoje constatamos a ausência de
possibilidades de escolha de lideranças políticas no tempo presente,
perguntamo-nos pelo esvaziamento político do campo solidarista que se encolheu
imensamente desde 1980. O Brasil era o país onde a teologia da libertação e
suas comunidades eclesiais de base (CEBs) eram mais numerosas e fortes,
politicamente. Mesmo considerando que este campo político tenha dado ao país um
presidente, Luís Inácio Lula da Silva emergiu da pastoral operária do ABC
paulista, sua desvitalização produziu um certo vazio político e, sem dúvida é
um dos componentes de crise. Já as oligarquias paulistas ficaram fora da
presidência da república entre 1930 e 1994, quando é eleito Fernando Henrique
Cardoso, pelo PSDB, força política com vários atributos do liberalismo
conservador intelectualizado.
Hoje estamos sim na contingência de uma
emergência.
A dificuldade de pactuarmos o que quer
que seja mostra que a crise que vivemos, a despeito de falar à crise econômica
mundial e suas consequências, passa por forte crise do poder. O que significa
dizer que tal crise real está vinculada à midiatização da própria crise,
processo no qual as tecnologias, as técnicas, as lógicas, as estratégias e as
linguagens das mídias passam a fazer parte das dinâmicas dos vários campos
sociais e políticos.
Os avanços sociais realizados nos
últimos tempos não podem parar. Inclusive no que se refere à integração
regional latino-americana; é condição para a consolidação da nova cadeia
produtiva iniciada pela formação histórica brasileira na última década. Para
isso é necessário investirmos no aperfeiçoamento da qualidade das pessoas e
instituições. Isto passa pela necessidade da conversação entre grupos sociais
que disputam o poder, pela repactuação da federação brasileira com as
oligarquias regionais e pela explícita inclusão da dimensão
global da multitude, representada pelos movimentos sociais e locais de excluídos.
A reforma política com constituinte
exclusiva tem sido invocada como saída para a crise política vivenciada
intensamente na conjuntura atual. Ao mesmo tempo, a força das maquinações
oligárquicas vem sendo designadas pelo campo político das reformas de base como
‘golpe’. A retórica da oposição ao atual governo invoca, casuisticamente, que o
impeachment está previsto na Constituição Cidadã. O fato da Constituição ter um dispositivo
para o impedimento de presidentes, não dá ao casuísmo evidente e juridicamente simplório
das oposições conservadoras o direito de atribuir uma casualidade à deposição
de um governo presidencialista recém-eleito em pleito disputadíssimo. O golpe
não é só no governo do Partido dos Trabalhadores, mas na Constituição que
previu o regime de governo presidencialista. No parlamentarismo, pode-se
substituir um primeiro-ministro que perde popularidade e apoio político do
parlamento. No presidencialismo não! Afinal, o país foi convocado
plebiscitariamente às urnas para decidir pelo regime de governo em 1993 e o
presidencialismo saiu vitorioso. Naquele plebiscito, até o regime monárquico
compareceu como opção...
Na reforma política ensaiada e desejada,
podemos sim reabrir o debate sobre o parlamentarismo. Mas primeiramente, temos
de colocar o debate político num patamar menos inflamado pela espetacularização
midiática. Informar bem informado o campo político nacional sobre a real
correlação de forças sociais e políticas no sentido vertical, onde a pactuação
entre as classes e seus interesses sociais e políticos sejam, enfim,
reconhecidos e legitimados (inclusive os direitos das empregadas domésticas –
último bastião da resiliência escravocrata entre nós). E informar também sobre
a correlação de forças políticas no sentido horizontal, identificando as
variações das oligárquicas regionais. Avaliar bem todos os sentimentos
políticos que estão por trás das forças sociais e políticas hegemônicas no
interior das diferentes oligarquias regionais, para, então, fazer uma nova
pactuação. Tudo, entretanto, respeitados os resultados das últimas eleições (as
eleições majoritárias de 2014); sem golpe de qualquer natureza.
*Professor
Titular de Teoria Política na UFF
**Professora
Titular de História na UFF
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