quarta-feira, 6 de abril de 2016

OLIGARQUIAS REGIONAIS E A FEDERAÇÃO BRASILEIRA


Gisálio Cerqueira Filho *
Gizlene Neder **

     A república brasileira é complexa e sua análise exige uma reflexão histórica, onde devemos colocar na bandeja das ponderações o aspecto autoritário, oligárquico e excludente, que foram hegemônicos entre 1889 e 1988 e além. Não estamos falando do período colonial; estamos abordando o instante presente da república.
     Identificamos três grandes forças políticas que se apresentam nestes cento e tantos anos de regime republicano: as oligarquias agrárias, a Igreja católica romana (nas últimas décadas, as igrejas protestantes) e as forças armadas. A Igreja havia retirado o apoio à monarquia nos episódios relacionados aos bispos de Olinda e Belém do Pará na chamada “Questão Religiosa” na década de 1870. Os militares expressavam um republicanismo radical e anticlerical (com forte presença do positivismo). Por sua vez, a “questão religiosa” no Brasil republicano implicou um processo de secularização lento, tendo a Igreja católica decidido não formar qualquer partido político. Atuou, no entanto, para garantir uma capilaridade de influência em todos os partidos e forças políticas. Cuidou atentamente para influir na política (aparentemente de fora dela), atuando especialmente na Educação e na Assistência Social que chamou de “serviço social”; as crianças, as famílias e os pobres “seriam dela”, Igreja.
     Na hora presente, texto recente assinado pelo bispo auxiliar de Brasília e secretário geral da CNBB, Leonardo Ulrich Steiner, em conjunto com a Associação dos Magistrados Brasileiros, a Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho e a Associação dos Juízes Federais do Brasil apela para que "as entidades da sociedade civil se unam pela superação da intolerância e pela busca de soluções que priorizem o compromisso com o interesse comum do país".
     Aqui vamos dar especial atenção à terceira força política presente neste longo período republicano: as oligarquias agrárias; elas são o verdadeiro nó górdio da política brasileira. São diferentes regionalmente (em tantas singularidades quanto são as formações históricas regionais que foram unidas pela política do Império). Para alguns historiadores e cientistas políticos, o problema do Brasil são as massas, “amorfas, desorganizadas e sem educação política”. Queremos defender exatamente o contrário. Para nós, o problema do Brasil está em suas oligarquias, diferentes entre si (difícil para um observador do Sul entender as oligarquias do Sudeste, do Nordeste, Centro-Oeste ou do Norte). Têm interesses contraditórias entre si, mas complementares e unificados quando farejam perigo para seu poder regional.
     A tipificação da proclamação da república em 1889 como golpe foi durante muito tempo evitada pela historiografia republicana, pois poderia levar água para o moinho da defesa da monarquia. Contudo, a proclamação da república implicou uma decisão política autoritária e deixou de fora do poder político vários setores do republicanismo genuíno com um viés liberal e democrático. Desagradou um Silva Jardim, um Clovis Bevilaqua para citar dois amigos que quando estudantes defenderam o republicanismo.
     Qualquer pacto político e social exige a articulação de diferentes forças sociais e políticas e sua correlação no sentido vertical e horizontal. O sentido vertical se refere às classes sociais e sua correlação de forças. Já o sentido horizontal se refere às forças dominantes supostamente com igual poder político (oligarquias regionais).
       O país saiu da escravidão (em 1888) e implantou a república em 1889 através de um golpe militar, dado contra a monarquia. Nenhum pacto social pós-abolição da escravidão implicou a inclusão da massa de ex-escravos à cidadania republicana. A presença de muitos intelectuais monarquistas impediu durante um bom tempo a referência ao primeiro golpe republicano dado pelos militares incentivados pelos interesses das novas oligarquias do café paulista, articuladas no Partido Republicano Paulista (PRP), com a participação do Partido Republicano Mineiro (PRM); aliados, mas não iguais. O movimento republicano no Brasil pode ser dividido em duas grandes correntes: o republicanismo genuíno (setores das classes médias urbanas, intelectuais, profissionais liberais) e o republicanismo da hora (setores novos das oligarquias agrárias que estavam fora do jogo de alianças políticas durante o Segundo Reinado do império brasileiro. No Segundo Reinado, a unidade política era garantida pela força (militar) que sufocou todos os movimentos políticos liberais radicais regionais e independentistas e pela aliança entre as oligarquias escravocratas do Norte (desde a década de 1950 chamado ‘Nordeste’) e as oligarquias cafeeiras escravocratas do Vale do Paraíba fluminense. As oligarquias do Vale tinham forte ligação com Minas Gerais e se estabeleceram no Vale do Paraíba fluminense numa atividade substituta da antiga exploração do ouro. Esta é uma das razões que diferenciam as oligarquias paulistas das outras oligarquias do que hoje chamamos ‘Sudeste’ – Minas/Rio e São Paulo. De fato, olhando o processo histórico com a lupa invertida da longa duração, devemos dizer que se tratam de duas escolhas políticas da colonização portuguesa: a opção pela escravização de indígenas (bugreiros) e a opção pela imigração compulsória de escravos oriundos da África (negreiros).
     Embora mudanças modernizadoras tenham ocorrido no país a partir da Revolução de 1930, identificamos uma permanência de longa duração da cultura política do poder local das oligarquias agrárias até o tempo presente – mesmo que tenham mecanizado a produção agrícola, e se designado de “agrobusiness”. Este poder local autoritário foi plasmado no regime escravista e colonialista e foi configurado pela centralização monárquica do Partido Conservador do tempo do Brasil imperial desde a reforma do Código de Processo Penal, de 1841. Esta reforma teceu a teia do coronelismo enquanto uma cadeia de fruição entre o poder central (naquela época designado como governo geral) e os poderes locais. Este pacto foi magistralmente descrito e explicado por Vitor Nunes Leal no seu livro “Coronelismo, Enxada e Voto” (1948), originalmente tese de concurso público para professor de Teoria Política da antiga Universidade do Brasil.
     Em 1930, as oligarquias de segunda grandeza (do Sul e do Norte) se articularam com setores urbanos emergentes da classe média e do operariado e retiraram as oligarquias paulistas/mineiras da direção do poder central. Estas expressavam um republicanismo pragmático, diferente dos republicanos genuínos, liberais radicais, e substituíram os primeiros governos militares. Após 1930, as oligarquias paulistas, derrotadas, ficaram fora do poder central por várias décadas (entre 1930 e 1994).
     A última ditadura militar (1964-1984) implicou ruptura e mudanças na correlação de forças oligárquicas. Aqui não podemos deixar de registrar o impacto da reforma tributária de 1965, pela qual Roberto Campos (então ministro da Fazenda) objetivava quebrar o coronelismo para viabilizar os projetos moderno-conservadores da ditadura. Sem dúvida, havia uma limitação ao poder local dos coronéis; mas não significava, ainda, a sua retirada da cena política. Alguns analistas chegaram a imaginar que o Estatuto da Terra (Lei 4504 de 30/11/1964), do governo do General Castelo Branco, poderia abrir caminho para uma repactuação com as oligarquias agrárias, mas não foi o que ocorreu.
     A Igreja integrista (do conservadorismo clerical) ao seu tempo apoiou a ditadura. A Igreja solidarista (da teologia da libertação) se opôs a ela. O paradoxo do processo político vivenciado pela sociedade brasileira nestas duas décadas de transição para o Estado de Direito tem na inflexão desta força política religiosa um ponto nevrálgico para não dizer traumático. No auge dos movimentos sociais e políticos organizados, mobilizados pelo solidarismo da teologia da libertação, em 1980, Karol Wojtyla (João Paulo II) é escolhido para realizar um papado conservador, de corte europeizado, e para atuar na desmobilização/constrangimento da teologia da libertação, predominantemente latino-americana. Quando hoje constatamos a ausência de possibilidades de escolha de lideranças políticas no tempo presente, perguntamo-nos pelo esvaziamento político do campo solidarista que se encolheu imensamente desde 1980. O Brasil era o país onde a teologia da libertação e suas comunidades eclesiais de base (CEBs) eram mais numerosas e fortes, politicamente. Mesmo considerando que este campo político tenha dado ao país um presidente, Luís Inácio Lula da Silva emergiu da pastoral operária do ABC paulista, sua desvitalização produziu um certo vazio político e, sem dúvida é um dos componentes de crise. Já as oligarquias paulistas ficaram fora da presidência da república entre 1930 e 1994, quando é eleito Fernando Henrique Cardoso, pelo PSDB, força política com vários atributos do liberalismo conservador intelectualizado.
     Hoje estamos sim na contingência de uma emergência.
    A dificuldade de pactuarmos o que quer que seja mostra que a crise que vivemos, a despeito de falar à crise econômica mundial e suas consequências, passa por forte crise do poder. O que significa dizer que tal crise real está vinculada à midiatização da própria crise, processo no qual as tecnologias, as técnicas, as lógicas, as estratégias e as linguagens das mídias passam a fazer parte das dinâmicas dos vários campos sociais e políticos.
     Os avanços sociais realizados nos últimos tempos não podem parar. Inclusive no que se refere à integração regional latino-americana; é condição para a consolidação da nova cadeia produtiva iniciada pela formação histórica brasileira na última década. Para isso é necessário investirmos no aperfeiçoamento da qualidade das pessoas e instituições. Isto passa pela necessidade da conversação entre grupos sociais que disputam o poder, pela repactuação da federação brasileira com as oligarquias regionais e pela explícita inclusão da dimensão global da multitude, representada pelos movimentos sociais e locais de excluídos.
     A reforma política com constituinte exclusiva tem sido invocada como saída para a crise política vivenciada intensamente na conjuntura atual. Ao mesmo tempo, a força das maquinações oligárquicas vem sendo designadas pelo campo político das reformas de base como ‘golpe’. A retórica da oposição ao atual governo invoca, casuisticamente, que o impeachment está previsto na Constituição Cidadã.  O fato da Constituição ter um dispositivo para o impedimento de presidentes, não dá ao casuísmo evidente e juridicamente simplório das oposições conservadoras o direito de atribuir uma casualidade à deposição de um governo presidencialista recém-eleito em pleito disputadíssimo. O golpe não é só no governo do Partido dos Trabalhadores, mas na Constituição que previu o regime de governo presidencialista. No parlamentarismo, pode-se substituir um primeiro-ministro que perde popularidade e apoio político do parlamento. No presidencialismo não! Afinal, o país foi convocado plebiscitariamente às urnas para decidir pelo regime de governo em 1993 e o presidencialismo saiu vitorioso. Naquele plebiscito, até o regime monárquico compareceu como opção...
     Na reforma política ensaiada e desejada, podemos sim reabrir o debate sobre o parlamentarismo. Mas primeiramente, temos de colocar o debate político num patamar menos inflamado pela espetacularização midiática. Informar bem informado o campo político nacional sobre a real correlação de forças sociais e políticas no sentido vertical, onde a pactuação entre as classes e seus interesses sociais e políticos sejam, enfim, reconhecidos e legitimados (inclusive os direitos das empregadas domésticas – último bastião da resiliência escravocrata entre nós). E informar também sobre a correlação de forças políticas no sentido horizontal, identificando as variações das oligárquicas regionais. Avaliar bem todos os sentimentos políticos que estão por trás das forças sociais e políticas hegemônicas no interior das diferentes oligarquias regionais, para, então, fazer uma nova pactuação. Tudo, entretanto, respeitados os resultados das últimas eleições (as eleições majoritárias de 2014); sem golpe de qualquer natureza.

*Professor Titular de Teoria Política na UFF
**Professora Titular de História na UFF


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