sábado, 23 de fevereiro de 2013



UM PAPA DO SUL É POSSÍVEL?

Gisálio Cerqueira Filho
Gizlene Neder


Os estudiosos de história política não devem se furtar de comentar as questões colocadas pela recente renúncia, com data anunciada, do Papa Bento XVI. Sobretudo se vivem e trabalham na América Latina.
A história do conceito de América Latina surgiu em meados do século XIX e estava referida a latinidade da cultura religiosa católica; assim os maçons da norte-América se referiam aos americanos que rezavam em latim. 
A partir da contribuição teórica de Reinhart Koselleck[1] queremos relativizar a história do conceito de América Latina. A história dos conceitos empreendida pelo autor implicou um mapeamento do processo de semantização presente nas diferentes lógicas de nomeação, classificação e, enfim, expressão das interpretações políticas em diferentes temporalidades. Contudo, a precedência na formulação da história dos conceitos encontra-se no livro Os Reis Taumaturgos (1924), de Marc Bloch, um dos fundadores da Escola dos Annales[2]. O corte epistemológico empreendido pela mais influente escola historiográfica francesa no século XX visava à superação do positivismo e a consideração das mediações entre tempo, sociedade e indivíduo no processo cognitivo. Daí a importância da identificação, datação e análise (histórica) dos significados e dos recursos heurísticos dos conceitos; tal como qualquer outra dimensão de análise nos estudos humanistas. “Mas a história dos conceitos como dos sentimentos políticos não deve ser procurada nas obras dos teóricos; certos modos de pensar ou de sentir são mais bem revelados pelos fatos da vida cotidiana do que pelos livros”[3]. Sublinhe-se a chamada de atenção de Bloch para a história dos sentimentos políticos, considerados, por ele, forte componente nos processos de legitimação e aculturação.
         A política externa e o campo da diplomacia nos diferentes países da íbero-América passaram, nas primeiras décadas do século XIX, pelo crivo político e ideológico britânico; com uma grande articulação com a maçonaria da Filadélfia[4]. Foi a partir da Filadélfia que se construiu, historicamente, o conceito de América Latina[5].  Na sua formulação original, na referência à latinidade encontramos certa associação com o “atraso” e o conservadorismo clerical do catolicismo romano.
Contudo, e o que nos parece mais importante, a referência à América Latina esteve ligada às investidas do imperialismo norte-americano em formação a partir do final do século XIX, como situado por João Feres Jr. De fato, sem discordar do rastreamento empreendido por Feres Jr., consideramos que o processo de ideologização que dá suporte ao conceito expressa muito mais uma ideia de América Latina do que um conceito de América Latina. A hegemonia da ideia de América Latina vai ocorrer principalmente a partir das últimas décadas do século XIX; sem dúvida, esta ideia substituiu as referências geográficas até então predominantemente usadas de América do Norte, Central e do Sul.
Se nas apropriações da interpretação comparativa no pensamento social e político no Brasil (com Tavares Bastos e outros), a ideia de América Latina estava referida a catolicidade da latinidade dos americanos (do centro e do sul) e se, nos processos sucessivos de apropriação cultural e atualização histórica, a latinidade, nas primeiras décadas do século XX, foi interpretada pela falta (aquele menos de progresso e modernidade), ela sofreu e vem sofrendo um deslizamento semântico, desde o segundo pós-guerra (meados do século XX). Este deslizamento semântico deve ser atribuído tanto à militância política de esquerda, quanto àquela empreendida pelo campo literário latino-americano, que romantizou e re-significou a ideia de América Latina.
Estas a razões porque optamos trabalhar a análise do campo político latino-americano a partir do que denominamos gramática dos sentimentos.
O Pe. Pedro Arrupe, S.J. - Superior Geral dos Jesuítas (1958-1983) - bem compreendeu esses sentimentos quando valorizou a prática religiosa impregnada dos afetos dos mais pobres (comunidades eclesiais de base – CEBs), embora não exclusivamente desses, numa perspectiva, que acabou por convergir e valorizar uma reflexão teológica que chegou a ser designada como “de libertação”.
A trombose que sofreu em 1981 ocorreu durante uma ampla disputa política com o Papa João Paulo II, quando este, recém-investido Papa, tentava travar as mudanças que o Concílio Vatiicano II, convocado por João XXIII, então provocava. João Paulo II tentava redirecionar os rumos liberalizantes anunciados anteriormente. Com a sua incapacitação física objetiva e após o período de intervenção dos Padres Paolo Dezza e Joseph Pitau, a Ordem foi enfim autorizada em 1983 a aceitar a renúncia de Arrupe e eleger um novo “Geral”. Assim, em 1983 foi escolhido o Pe. Hans Kolvenbach, S.J. que dirigiu a Companhia de Jesus desde esta data e até 2008 quando o Papa Bento XVI autorizou a sua renúncia por questões de saúde. Ressaltou, entretanto, que se tratava de uma concessão pessoal a Kolvenbach, e se opôs a que esta opção se incorporasse à Constituição dos Jesuítas.
É uma ironia da história que venha exatamente o Papa Bento XVI, propor unilateralmente, a sua renúncia por questões de saúde, e não tão claras assim. Tais são as razões que permitem supor que a decisão do Papa atual tenha uma dose de cálculo e estratégia política, cujos objetivos atiçam o imaginário.
Ninguém poderá esquecer aquela imagem em que Pedro Arrupe solicitava a bênção de joelhos a João Paulo II; nem aquela outra que agora recordamos: estando em Lisboa, rezou ajoelhado diante da estátua do Marquês de Pombal e disse O mundo avança mesmo sem nós, (mas) de nós depende que avance conosco!
As mídias, apanhadas de surpresa com a renúncia do Papa, já saíram a campo com um conjunto de materiais, artigos, ensaios, reflexões que certamente autorizam os latino-americanos a sonharem com um Papa que possa ser chamado de seu.
         Seria isso possível?




[1] Koselleck, Reinhart. Crítica e Crise, Rio de Janeiro: Contraponto/ EdUERJ, 1999. Koselleck. Reinhart. Futuro Passado: contribuição à semântica dos tempos históricos, Rio de Janeiro: Contraponto / Editora PUC-RIO, 2006.
[2] Bloch, Marc. Os reis taumaturgos: o caráter sobrenatural do poder régio, França e Inglaterra, São Paulo: Companhia das Letras, 1993.
[3] Idem, p. 152.
[4] O que constituiu uma prática geral da política externa norte-americana. Ver Michelsen, Alfonso López. La estierpe calvinista de nuestras instituitiones políticas, Bogotá: Ediciones Tercer Mundo, 1966.
[5] Feres Jr., João. A história do conceito de Latin America nos Estados Unidos. Bauru: EdUSC/ANPOCS, 2005.

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