UM PAPA DO SUL É POSSÍVEL?
Gisálio
Cerqueira Filho
Gizlene
Neder
Os estudiosos de história
política não devem se furtar de comentar as questões colocadas pela recente
renúncia, com data anunciada, do Papa Bento XVI. Sobretudo se vivem e trabalham
na América Latina.
A história do conceito de América Latina surgiu em meados do
século XIX e estava referida a latinidade da cultura religiosa católica; assim
os maçons da norte-América se referiam aos americanos que rezavam em
latim.
A partir da contribuição
teórica de Reinhart Koselleck[1] queremos relativizar a
história do conceito de América Latina. A história dos conceitos empreendida
pelo autor implicou um mapeamento do processo de semantização presente nas
diferentes lógicas de nomeação, classificação e, enfim, expressão das
interpretações políticas em diferentes temporalidades. Contudo, a precedência
na formulação da história dos conceitos encontra-se no livro Os Reis Taumaturgos (1924), de Marc
Bloch, um dos fundadores da Escola dos Annales[2]. O corte epistemológico
empreendido pela mais influente escola historiográfica francesa no século XX
visava à superação do positivismo e a consideração das mediações entre tempo,
sociedade e indivíduo no processo cognitivo. Daí a importância da
identificação, datação e análise (histórica) dos significados e dos recursos
heurísticos dos conceitos; tal como qualquer outra dimensão de análise nos
estudos humanistas. “Mas a história dos
conceitos como dos sentimentos políticos não deve ser procurada nas obras dos
teóricos; certos modos de pensar ou de sentir são mais bem revelados pelos fatos
da vida cotidiana do que pelos livros”[3]. Sublinhe-se a chamada de
atenção de Bloch para a história dos sentimentos políticos, considerados, por
ele, forte componente nos processos de legitimação e aculturação.
A
política externa e o campo da diplomacia nos diferentes países da íbero-América
passaram, nas primeiras décadas do século XIX, pelo crivo político e ideológico
britânico; com uma grande articulação com a maçonaria da Filadélfia[4]. Foi a partir da
Filadélfia que se construiu, historicamente, o conceito de América Latina[5]. Na sua formulação original, na referência à
latinidade encontramos certa associação com o “atraso” e o conservadorismo
clerical do catolicismo romano.
Contudo, e o que nos parece
mais importante, a referência à América Latina esteve ligada às investidas do
imperialismo norte-americano em formação a partir do final do século XIX, como
situado por João Feres Jr. De fato, sem discordar do rastreamento empreendido
por Feres Jr., consideramos que o processo de ideologização que dá suporte ao
conceito expressa muito mais uma ideia de América Latina do que um conceito de
América Latina. A hegemonia da ideia de América Latina vai ocorrer
principalmente a partir das últimas décadas do século XIX; sem dúvida, esta
ideia substituiu as referências geográficas até então predominantemente usadas
de América do Norte, Central e do Sul.
Se nas apropriações da
interpretação comparativa no pensamento social e político no Brasil (com
Tavares Bastos e outros), a ideia de América Latina estava referida a
catolicidade da latinidade dos americanos (do centro e do sul) e se, nos
processos sucessivos de apropriação cultural e atualização histórica, a
latinidade, nas primeiras décadas do século XX, foi interpretada pela falta
(aquele menos de progresso e modernidade), ela sofreu e vem sofrendo um
deslizamento semântico, desde o segundo pós-guerra (meados do século XX). Este
deslizamento semântico deve ser atribuído tanto à militância política de
esquerda, quanto àquela empreendida pelo campo literário latino-americano, que
romantizou e re-significou a ideia de América Latina.
Estas a razões porque
optamos trabalhar a análise do campo político latino-americano a partir do que
denominamos gramática dos sentimentos.
O Pe. Pedro Arrupe, S.J. -
Superior Geral dos Jesuítas (1958-1983) - bem compreendeu esses sentimentos
quando valorizou a prática religiosa impregnada dos afetos dos mais pobres
(comunidades eclesiais de base – CEBs), embora não exclusivamente desses, numa
perspectiva, que acabou por convergir e valorizar uma reflexão teológica que
chegou a ser designada como “de libertação”.
A trombose que sofreu em
1981 ocorreu durante uma ampla disputa política com o Papa João Paulo II,
quando este, recém-investido Papa, tentava travar as mudanças que o Concílio
Vatiicano II, convocado por João XXIII, então provocava. João Paulo II tentava
redirecionar os rumos liberalizantes anunciados anteriormente. Com a sua
incapacitação física objetiva e após o período de intervenção dos Padres Paolo
Dezza e Joseph Pitau, a Ordem foi enfim autorizada em 1983 a aceitar a renúncia
de Arrupe e eleger um novo “Geral”. Assim, em 1983 foi escolhido o Pe. Hans
Kolvenbach, S.J. que dirigiu a Companhia de Jesus desde esta data e até 2008
quando o Papa Bento XVI autorizou a sua renúncia por questões de saúde.
Ressaltou, entretanto, que se tratava de uma concessão pessoal a Kolvenbach, e
se opôs a que esta opção se incorporasse à Constituição dos Jesuítas.
É uma ironia da história que venha exatamente o
Papa Bento XVI, propor unilateralmente, a sua renúncia por questões de saúde, e
não tão claras assim. Tais são as razões que permitem supor que a decisão do
Papa atual tenha uma dose de cálculo e estratégia política, cujos objetivos
atiçam o imaginário.
Ninguém poderá esquecer
aquela imagem em que Pedro Arrupe solicitava a bênção de joelhos a João Paulo
II; nem aquela outra que agora recordamos: estando em Lisboa, rezou ajoelhado
diante da estátua do Marquês de Pombal e disse O mundo avança mesmo sem nós,
(mas) de nós depende que avance conosco!
As mídias, apanhadas de surpresa com a renúncia do
Papa, já saíram a campo com um conjunto de materiais, artigos, ensaios,
reflexões que certamente autorizam os latino-americanos a sonharem com um Papa
que possa ser chamado de seu.
Seria
isso possível?
[1] Koselleck, Reinhart. Crítica e Crise, Rio de Janeiro:
Contraponto/ EdUERJ, 1999. Koselleck. Reinhart. Futuro Passado: contribuição à semântica dos tempos históricos, Rio
de Janeiro: Contraponto / Editora PUC-RIO, 2006.
[2] Bloch, Marc. Os reis taumaturgos: o caráter sobrenatural do poder régio, França e
Inglaterra, São Paulo: Companhia das Letras, 1993.
[3] Idem, p. 152.
[4] O que constituiu uma prática geral da
política externa norte-americana. Ver Michelsen, Alfonso López. La estierpe calvinista de nuestras
instituitiones políticas, Bogotá: Ediciones Tercer Mundo, 1966.
[5] Feres Jr., João. A história do conceito de Latin America nos Estados Unidos. Bauru:
EdUSC/ANPOCS, 2005.
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